Cada ano, com viva fé, celebramos o mistério central da nossa fé, a Páscoa! Como diz o Apostolo, «se Cristo não fosse ressuscitado» (1Cor15,14.17) tudo seria em vão e sem sentido! No primeiro dia de cada semana a assembleia liturgica confessa o seu artigo central de fé: Cristo «ressuscitou ao terceiro dia conforme as Escrituras». Já muito cedo, nos anos 50s DC, Paulo, escrevendo aos cristãos de Corinto, reconhece esta antiquíssima tradição apostolica: «Transmiti-vos primeiramente o que também eu recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras» (1Cor15:3-4).
Todavia, a ressureição no terceiro dia embora seja comum a nós, não é assim fácil de interpretação e ainda mais difícil é confirmá-la nas Escrituras Sagradas. Comentando o “terceiro dia”, os editores da Bíblia do Peregrino edição paulina 2002 dizem: «O terceiro dia é tempo da graça»; os de Difusora biblica 2014: «O terceiro dia segundo as escrituras situa estes mistérios no desígnio divino da salvação» (cf 1Cor15,4). Naturalmente se poderia perguntar: em que fonte do Antigo Testamento o Novo Testamento se ispira?
Digamos já e com clareza: a teologia da «ressureição ao terceiro dia» não é uma novidade do Novo Testamento. Esta teologia é bem conhecida pelos Rabinos antes da era critã. É a esta fonte, -acho eu- que si ispiraram os agiografos do Novo Testamento. A afirmação novo-testamentária «ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras» aclara-se à luz dos Midrash (o corpo literal rabbinico do comentário biblico). Entender bem a hermeneutica rabbinica nos ajudaria a entender bem a teologia dos hagiógrafos do Novo Testamento. A confirmá-lo, citamos um dos Midrash mais relevantes ao nosso argomento:
“Ao terceiro dia, Abraão ergue seus olhos...” (Gen 22,4). Está escrito: “Depois de dois dias nos dará a vida; ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele” (Hos 6,2). Ao terceiro dia das tribos está escrito: “Ao terceiro dia, José disse lhes...” (Gen 42,18). Ao terceiro dia do dom de Toráh se diz “E aconteceu que, ao terceiro dia...” (Exo 19,16) Ao terceiro dia de Jonas, como esta escrito: “...e Jonas esteve três dias e três noites nas entranhas do peixe” (Jn 2,1). Ao terceiro dia daqueles que regressaram da escravidão está escrito “... e aí descançámos por três dias” (Ezra 8,32). Ao terceiro dia da ressureição dos mortos, como está escrito:“Depois de dois dias nos dará a vida; ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele” (Hos 6,2). Ao terceiro dia de Ester…(Est 5,1). Por qual mérito? Os Rabinos dizem: em mérito do terceiro dia em que foi dada a Torah, como está escrito: “E aconteceu que, ao terceiro dia quando era manhã ...(Ex 19,16)[1]
A argumentação midrashica pode parecer estranha a nós mas é o típico modo midrashico: com muitas lacunas citando apenas uns pedaços iniciais ou terminais dos versículos biblicos pressupondo que o leitor saiba tudo o resto. Observamos que os versículos têm um ponto em comum: «o terceiro dia». O objectivo deste modo de proceder Midrashico é de dar o fundamento bíblico a uma verdade (no nosso caso, a ressureição ao terceiro dia) e assim mostrar que a mesma é biblicamente bem documentata em toda a Escritura a partir do Pentateuco, os profetas e até os Escritos. Para entrar na lógica do midrash precisamos encostar e completar os versículos aos seus respectivos trechos.
O terceiro dia do nosso pai Abraão: Depois de uma lunga caminhada, foi no terceiro dia que Deus mostrou a Abraão o monte sobre o qual devia imolar o Isaac seu filho mas o qual foi restituido à vida por ordem do anjo de Deus (Gen 22,4).
No terceiro dia dos filhos de Jacob no Egipto (dia das tribos), José, depois de ter detido os seus irmãos, decidiu de os livrar e os deixar partir para o seu país de Caanan: «Ao terceiro dia, José disse-lhes: fazeis o seguinte e vivereis..»(Gen42,18). A Torah, o dom supremo que é alimento e vida para o povo de Israel foi doado ao povo no terceiro dia após uma longa e perigosa caminhada no deserto (Ex 19:1-16). Jonas, depois de estar no peixe por três dias voltou à vida (Jn 2,1ff). O profeta Hoseas é o mais explicito: «Depois de dois dias nos dará a vida; ao terceiro dia nos ressuscitará, e viveremos diante dele» (Hos 6,2).
Olhando para aquilo que já temos dito, o terceiro dia na perspectiva da hermeneutica midrashica é o prazo de tempo em que qualquer situação critica encontra resposta positiva da parte de Deus; é o dia do dom da vida, o dia da ressureição. Os hagiógrafos do Novo Testamento, sendo eles todos descentendes hebreus e fruto das escolas rabbinicas (veja Paulo Act 22,3; Fil 3,5), ao acontencimento transcendente da ressureição de Jesus, deram um toque midrashico nas suas obras sendo essa a hermeneutica em uso. Por isso, a afirmação novo-testamentária «ressuscitou ao terceiro dia segundo as Escrituras» não se refere a um particular versículo, qualquer que seja, mas sim a toda a Bíblia: o Pentateuco, os Profetas e os Escritos.
Padre Marco Simbeye, imc: paróquia santo Agostinho – Viana Angola
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[1] Gen R 56,1. O midrash Rabbah comentanto Gen 22,4. A citação midrashica em português é feita por mim a partir de Midrash Rabbah em Inglês, e reconheço desde já em um português arranhado. Para o texto original quer em hebraico quer em Ingles vê-se o link: https://www.sefaria.org/Bereishit_Rabbah.56.1?with=all&lang=bi