A misericórdia: caminho para amazonizar-se

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A misericórdia é um tema central na vida da Igreja de Cristo.  Este tema foi retomado com mais intensidade no ano da misericórdia anunciada (de 8 de dezembro de 2015 a 20 de novembro de 2016) pelo Papa Francisco. A misericórdia é a característica de Deus diante dos seres humanos. Assim, sendo criaturas de Deus, os seres humanos são chamados a viver esta característica divina entre eles porque Deus mostrou-lhes o caminho. Mas acontece que, ao longo da caminhada do povo de Deus, esta característica por vezes foi esquecida ou se fala, mas não em profundidade. Num mundo individualista, intolerante onde as leis são colocadas no primeiro plano; num mundo onde tudo se resolve graças ao dinheiro; num mundo onde o ser humano perde sempre a sua dignidade; num mundo onde os fracos, os pobres são rejeitados pela sociedade; num mundo onde Deus não se encontra no primeiro plano, é difícil aos seres humanos reconhecerem a figura de Deus nas pessoas e serem misericordiosos.

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Por isso, diante destas realidades que o mundo vive hoje, acha-se que, para uma boa integração de todos na sociedade, na comunidade cristã, é preciso retomar as práticas da misericórdia.

A prática da misericórdia se fez presente na longa história do povo de Deus; primeiro, no Antigo Testamento e depois no Novo Testamento com os ensinamentos de Jesus e as práticas misericordiosas propostas por Ele.

A partir das propostas da eclesiologia do Papa Francisco, o tema de misericórdia: caminho para amazonizar-se é importante não só para a Igreja na Amazônia, mas também para a Igreja no mundo.  Certamente, as práticas da misericórdia levam o ser humano a procurar a dignidade do seu semelhante, que é criatura de Deus. Através das práticas de Jesus, percebe-se que todas as suas ações misericordiosas procuravam mostrar o desígnio do Pai que é a valorização, a dignificação do ser humano.

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Jesus fez da misericórdia a base da sua pregação mostrando o rosto verdadeiro de Deus para com os homens. Desde o Antigo Testamento, existiam pregações e profecias que apresentavam ao povo de Israel o aspeto misericordioso de Deus. Mas Jesus é esta apresentação concreta e efetiva do amor de Deus no meio dos homens. Retomar hoje com maior intensidade os ensinamentos de Jesus demonstra a atualidade da mensagem salvífica e confirma a presença da Igreja na Amazônia e no mundo.

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A palavra ‘misericórdia’ formada por duas raízes miserere e cordis destaca a compaixão que brota do coração, do íntimo da pessoa humana. A compaixão leva a pessoa humana a sentir o que o outro sente. Por isso, a misericórdia é vista como o gesto ou ato de sentir procurando viver a solidariedade com o próximo. A misericórdia reveste-se também de um caráter operativo na busca de viver o amor em exercício de salvação. Este aspeto revela também a qualidade ativa do amor de Deus para com os homens. Por isso:

A misericórdia começa com um sentir pena, exprimir condolências, mas só se completa como experiência profunda quando se é afetado pela miséria alheia nas próprias entranhas vitais e corporais. Muitas vezes foi descrita como o sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la, mas é certamente muito mais que isso. Expressa a participação espiritual na infelicidade alheia, suscitando um impulso altruísta de ternura para com o sofredor[1].

O movimento de sentimento e afetividade e também de ação, de mudança e reflexão é suscitado pela misericórdia que vai da melancolia à ternura. É preciso resgatar o verdadeiro sentido da misericórdia para não cair no aspeto do paternalismo ou na exploração da vida humana. Não existe no exercício da misericórdia a ideia de passividade negativa. Por isso, este sentimento de amor que brota do coração de Deus apresenta como exigência o caminho de aprendizado e fidelidade da parte do ser humano. Neste aprendizado, entende-se que a passividade ativa misericordiosa leva a uma abertura ao outro que favorece a vida humana e cristã.

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A prática da misericórdia desde o princípio da sua atuação busca dignificar a vida do ser humano porque este foi criado à imagem e semelhança de Deus. E Jesus ensinou aos seus discípulos que é preciso ser misericordioso e se colocar a serviço da vida humana. De fato, “Misericórdia é amor fecundo, misterioso e dialógico. Ela revela a própria pessoa de Jesus e de seu Evangelho de paz e justiça”[2].

A misericórdia não foi a única realidade que Jesus ensinou ou praticava, mas ela é vista como origem de todas as ações d´Ele. Assim, Na sua experiência da fé em Cristo e nos seus ensinos, a Igreja vive a misericórdia de Deus olhando e contemplando todos os passos realizados por Jesus Cristo desde o nascimento até a sua ascensão. Isto é a face ou rosto verdadeiro da missão da Igreja, sobretudo, no contexto atual da Amazônia. Esta missão da Igreja é efetiva só quando ela (Igreja) professa e proclama verdadeiramente a misericórdia no seu dia a dia diante das situações apresentadas pelo mundo.

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A Igreja não só deve proclamar e professar a misericórdia, mas também deve ter misericórdia para com os demais. Por isso, viver o “princípio misericórdia” pode ser o caminho a seguir para a realidade atual. O princípio misericórdia é visto por Sobrino como “um amor específico que está na origem de um processo, mas que além disso permanece presente e ativo ao longo dele, dá-lhe uma determinada direção e configura os diversos elementos dentro do processo”[3]. Neste processo, o amor misericordioso leva a uma ação ou reação diante do sofrimento extremo do próximo. O motivo verdadeiro desta ação é o sofrimento. O princípio misericórdia conduz a Igreja a valorizar os direitos da vida e da liberdade do ser humano dentro da sociedade. Assim a Igreja se torna mais humana na sua ação seja no seu aspeto interior seja no exterior. Por isso, este princípio vai contra a centralização de poder na Igreja porque leva a Igreja a sair do seu individualismo, da sua comodidade para ir ao encontro dos feridos da sociedade.

Esta perspetiva de uma Igreja em saída animou o Papa Francisco desde o início do seu pontificado. Animado pela misericórdia dos mais pobres e necessitados, o Papa convocou no ano passado nos dias 6 a 25 de outubro o sínodo para a Amazônia tendo como título: Amazônia: novos caminhos para a igreja e para uma ecologia integral. No desejo de estar mais próximo dos povos originários que vivem nesta parte da América Latina e escutando o clamor deste povo, o Papa convida a todos para estarem mais atentos aos gritos destes povos e da natureza:

A Amazónia é um todo plurinacional interligado, um grande bioma partilhado por nove países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Perú, Suriname, Venezuela e Guiana Francesa. Todavia dirijo esta Exortação ao mundo inteiro. Faço-o, por um lado, para ajudar a despertar a estima e solicitude por esta terra, que também é «nossa», convidando-o a admirá-la e reconhecê-la como um mistério sagrado; e, por outro, porque a atenção da Igreja às problemáticas deste território obriga-nos a retomar brevemente algumas questões que não devemos esquecer e que podem servir de inspiração para outras regiões da terra enfrentarem os seus próprios desafios[4].

Esta exortação do Papa convida a Igreja a buscar novos caminhos de evangelização e também para a defesa de uma ecologia integral. Esta visão que se manifesta a partir dos quatro sonhos do Papa: sonhos social, cultural, ecológico e eclesial permite à Igreja se amazonizar. Esta ação de amazonizar-se consiste no exercício de: conhecer, reconhecer, proteger, cuidar[5]. Estes verbos abrem novos caminhos para uma inculturação do Evangelho. Estes novos caminhos começam com a escuta. Esta escuta leva a Igreja e seus membros a: amar e respeitar, desaprender e aprender, reaprender, contemplar o ser humano e toda natureza buscando ajudar os povos originários a viverem com protagonismo.

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De fato, a vivência da misericórdia é um caminho para a Igreja se amazonizar. Sem a misericórdia, não haverá escuta dos povos originários e a natureza; não haverá aprendizagem, contemplação, amor e respeito aos povos originários e proteção da Mãe-Terra. Esta prática da misericórdia que oferece novos caminhos para amazonizar-se pode ser enriquecida também pela vivência de UBUNTU. O Ubuntu é uma maneira da vida do povo da África negra que levou por muitos anos o povo deste continente a lutar contra as injustiças e a promover a igualdade. Esta filosofia africana abrange todos os aspetos da vida humana procurando valorizar a vida e a presença de cada membro dentro da sociedade. Portanto,

Ubuntu, palavra existente nos idiomas sul africanos zulu e xhosa que significa “humanidade para todos”, é a denominação de uma espécie de “Filosofia do Nós”, de uma ética coletiva cujo sentido é a conexão de pessoas com a vida, a natureza, o divino e as outras pessoas em formas comunitárias. A preocupação com o outro, a solidariedade, a partilha e a vida em comunidade são princípios fundamentais da ética Ubuntu[6].

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De fato, Ubuntu ou outras apelações retratam a cosmovisão africana do mundo onde o ser humano se encontra em relação com o divino, com o mundo, com a comunidade, com a natureza. Neste sentido, o ser humano não pode viver isolado da comunidade mesmo tendo dificuldade seja de saúde ou espiritual. A presença de cada um é de maior importância. Por isso, esta palavra Ubuntu ou Bisoité ou Ujama leva à compreensão de que ‘eu só existo porque nós existimos’. Esta filosofia ajudou na luta contra o espírito individualista trazido pelos colonizadores europeus e lutar contra a política exclusivista no continente.

Enfim, para chegar na busca deste caminho da misericórdia para amazonizar-se, a motivação vem a partir das práticas do Papa Francisco na sua maneira de tratar as pessoas e de transmitir a mensagem da misericórdia ao mundo que passa por vários momentos difíceis por causa do individualismo, da divisão entre os homens. A partir das suas práticas baseadas na misericórdia, se percebe a missão da Igreja diante da vida degradante dos povos originários e dos biomas na Amazônia porque ser misericordioso é dar vida ao próximo.

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* Padre OSCAR LIOFO TONGOMBE, Missionário da Consolata, região do Brasil-Grupo Amazônia



[1] ALTEMEYER, J. Fernando, Sujeitos da misericórdia.  In: MILLEN, Maria Inês de Carsto; ZACHARIAS, Ronaldo (Org.). O Imperativo ético da misericórdia. Aparecida, SP: Santuário,  2016, p. 103

[2] Ibidem, p. 104.

[3] SOBRINO, Jon. O Princípio misericórdia. Petrópolis: Vozes, p. 32.

[4] Papa FRANCISCO, Exortação pós-sinodal QUERIDA AMAZONIA, n°5.

[5] Prof. Dr Márcia Maria de Oliveira, Realidade político-econômica e socioambiental da Amazônia. Curso de realidade amazónica 2020.

[6]  NASCIMENTO, Alexandro. Ubunto como fundamento. UJIMA-Revista de estudos culturais e afro-brasileiros, N°2, junho 2016, p.1.

Last modified on Saturday, 27 June 2020 18:36

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