Freud, o pai da psicanálise, identificou duas pulsões básicas: uma que afirma e exalta a vida, e outra que tende para a morte. A agressividade surge quando o instinto de morte é ativado por alguma ameaça que vem de fora. Já o pensador contemporâneo René Girard argumenta que a agressividade provém da permanente rivalidade existente entre os seres humanos, denominada de “desejo mimético”. Esta rivalidade cria permanentes tensões. O teólogo Leonardo Boff salienta que o ser humano vive numa certa ambigüidade: a realidade, de um lado, vem marcada por conflitos e, de outro, por ordem e paz. Nenhum destes lados consegue erradicar o outro. O desafio consiste em manter o equilíbrio nessa tensão, buscando aquela convergência de energias que permitem o surgimento da paz - fruto de instituições minimamente justas, amparadas por um Estado que zela pelo equilíbrio, usando, quando preciso, da coerção. Esta linha de pensamento está em sintonia com os princípios do Estado Moderno, delineados por Max Weber. A ordem legal define o Estado moderno como detentor do monopólio sobre a administração da força que pode ser “violência”. Para que a administração da força não fique à mercê de cada um, o Estado legitimamente organizado, com suas instituições detém o direito sobre ela. Por isso é fundamental manter a diferença entre as ações do sistema judiciário (ações da instituição legítima para fazer justiça) e a vingança (ações de indivíduos para fazer justiça em causa própria).
Na sociedade contemporânea, com tanta midiatização, a violência tornou-se um espetáculo, sendo cada vez mais banalizada. É impressionante a forma como ela alimenta os jornais e ocupa espaço na televisão. O início da imprensa coincide com duas preocupações em torno das quais se vendiam jornais: a) ter notícias certas sobre os movimentos econômicos como saber se as embarcações com as especiarias chegavam com segurança ao seu destino; b) o espanto da sociedade européia diante das descobertas do novo mundo; as maravilhas, o desconhecido, o sensacional. Notícias sobre uma suposta “vaca com duas cabeças” ou “um bebê de rabo”, vendiam. Hoje as preocupações, de maneira geral, encontram-se na mesma linha. A maior parte dos espaços nos jornais e noticiários da televisão é ocupado por matérias sobre as incertezas econômicas. Variações na Bolsa, mudanças no câmbio e investimentos financeiros interessam ao público. Além disso, o fascínio pelo anormal, o medo e a “glamourização” da violência vende o jornal e atrai telespectadores.
Na verdade, o crime, o medo, a violência, o sofrimento, a dor e a morte coexistem com a sociedade de direito e por mais que se deseja não conseguimos removê-los. Esse é o grande alimento de todo o poder do Estado, das instituições e da mídia em geral. A cultura da paz depende da predominância das positividades e da vigilância que as pessoas e as instituições mantiverem sobre a outra dimensão, igualmente presente, de rivalidade, de egoísmo e de exclusão. Sem o equilíbrio na coexistência dos opostos seria impossível construir uma sociedade que garanta uma convivência mínima entre os seres humanos. Se o Estado está ausente, grupos e gangues preenchem o vazio. A relação chega a ser de favor. No entanto, o medo continua a existir em duas vertentes: a) em relação à economia: O que vai acontecer com o meu emprego e investimentos? b) em relação à violência e o desconhecido: O que vai me acontecer quando eu sair na rua amanhã?
O jornal “Folha de São Paulo” publicou recentemente uma pesquisa do Datafolha (edição de domingo, 25 de março de 2007) onde a “violência passa o desemprego como principal preocupação”. Enquanto 22% dos brasileiros acham que o desemprego é o maior problema, 31% dizem que é a violência. Preocupação justa. Nos últimos meses as mortes pelas chamadas “balas perdidas” alimentaram os noticiários, motivaram debates e inspiraram manifestações. Em outubro de 2005, no referendo sobre o desarmamento os brasileiros escolheram continuar comercializando armas de fogo e munição. Ganhou a cultura do medo contra a violência, com 64% dos votos. A cultura de paz, a sociedade e o próprio Estado saíram derrotados. Muitos ficaram sentados e deixaram o referendo acontecer. Alguns dos que apoiaram o “não” vitorioso, inclusive setores da mídia, agora se perguntam: "e aí, não vamos fazer nada?" Como entender essa ambigüidade? O fim da violência e das tais balas perdidas não se limita a um referendo, mas poderia ter sido o início de um processo de implantação da cultura da paz ou pelo menos uma demonstração de bom senso. Essa oportunidade foi perdida e logo esquecida! A princípio, toda bala é perdida desde a sua fabricação, e não somente quando atinge inocentes. De fato, toda arma, porque feita para matar, é perdida desde a sua invenção.
O Brasil é um dos maiores fabricantes de armas de pequeno porte do mundo. O dado é do grupo de pesquisas Suíço “Small Arms Survey”, do Instituto de Estudos Internacionais de Genebra. Entre 2002 e 2006, o Brasil foi responsável pela produção de uma quantidade de armas cinco vezes maior que a recolhida durante a campanha do desarmamento, entre 2004 e 2005. Somente a empresa gaúcha Taurus, que investiu pesado no “não” durante o referendo, teve um aumento de 67%, em seu lucro líquido no último ano, passando de cerca de R$ 18 milhões para em torno de R$ 30 milhões. Pelo visto, infelizmente continuaremos noticiando e chorando “vidas perdidas”.