Um povo que quer viver
Em termos prospectivos, é sintomático o fato desta edição do FSM ter se realizado na África. A riqueza e a pobreza do continente africano, uma convivendo ao lado da outra, já se tornaram lendárias. As páginas, imagens e palavras da mídia nos acostumaram a esse duplo imaginário: de um lado, crianças, adultos e velhos esqueléticos e raquíticos, com as vértebras desenhadas sob a pele negra, de olhos tão grandes como a fome e o medo que moram neles; de outro, uma natureza pujante, num clima tropical, onde o subsolo também pode surpreender por seus bens ocultos. Ali os contrastes entre uns poucos ricos e uma massa de pobres é mais agudo do que em qualquer lugar do planeta. A realidade mais crua e os mistérios mais profundos parecem dar-se as mãos. Ao mesmo tempo, desertos e florestas coexistem com outros biomas, tão variados quanto imprevistos.
É a África da subnutrição e da magia, das guerras e guerreiros, ao lado de alguns vilões oportunistas, sejam eles políticos das mais variadas ideologias, religiosos dos mais diferentes matizes, ou cientistas sem escrúpulos. Lugar de lutas misturadas com celebrações, de risos misturados com lágrimas e, como conseqüência, de migrantes e de refugiados amontoados em campos cercados de arame farpado. Terreno fértil para as doenças infecciosas, como a AIDS, por exemplo, que ali prolifera e dizima a população, em meio à precariedade das condições sociais e à indiferença do resto do mundo. Continente historicamente devastado pela cobiça estrangeira de impérios e colonizadores, onde a política do saque e da exploração secular fez com que a riqueza do solo engendrasse a pobreza de sua gente.
África negra e mãe, pátria dos tambores e atabaques, linguagem forjada no ventre da terra e no coração da selva, que traduz a força e a energia de um povo que não se deixa vencer. África de ricas danças e de gestos solidários, onde corpo e alma se entrelaçam numa coreografia vívida e alegre, como a mostrar que ninguém mata o sonho de quem tem os pés na terra e os olhos postos no horizonte. África de sagas ancestrais, onde resistência, sabedoria e sonho mergulham as raízes num terreno marcado, ao mesmo tempo, pela colonização histórica e pelas lutas de libertação.
Perguntas que incomodam
Diante do FSM em Nairóbi, algumas perguntas se impõem. Convém começar questionando se seus participantes encontram-se abertos e permeáveis à riqueza histórico-cultural desse continente, ainda desconhecido por grande parte do mundo. Manterão eles seus esquemas fixos e imutáveis, ou se deixarão surpreender e interpelar pelas novidades de um continente revestido, a um só tempo, de magia e combate? Em curtas palavras, neste Fórum haverá espaço para a África e os africanos, continente e povo muitas vezes esquecidos pelo resto do planeta?
Trata-se, sem dúvida, de um momento decisivo para a trajetória do FSM. Se, em Davos, o Fórum Econômico teima em deixar o continente africano à margem de seus projetos e metas de desenvolvimento, em Nairóbi, o Fórum Social faz da África o centro inquestionável de seus debates. Se, ao longo de séculos de história, a África esteve submetida a uma série de invasores e saqueadores, é hora de se deixar penetrar e questionar por suas inquietações. Nenhum outro mundo será possível, se essa região do planeta continuar sendo esquecida.
Vale aqui uma rápida passagem pelo Evangelho. Em seus relatos, a pedagogia de Jesus é marcada por uma nota curiosa: trazer para o centro aquele que, por motivos de doença, abandono, exclusão social ou pobreza, se encontra à margem da sociedade. Assim, estrangeiros, mulheres, crianças, leprosos, pecadores, coxos, publicanos, prostitutas etc., desfilam nas páginas do Evangelho e na caravana de Jesus não como assistidos passivos, mas como reais protagonistas.
Aqui está o nó central da questão: no Fórum Social de Nairóbi, ou a África se torna a principal protagonista dos debates, ou tudo não passará de retórica. Evidente que, para muitos movimentos sociais, entidades e ONG’s, isso exige mudanças tanto nos conteúdos como nos métodos de ação. Talvez esse nó pudesse ser traduzido em uma última pergunta, ao mesmo tempo crucial e interpeladora: até que ponto, em nossas práticas diárias, os mais pobres e excluídos estão realmente presentes? E mais: até que ponto são eles, os pobres e os excluídos, os reais sujeitos dos programas e atividades que levamos adiante?